Sete menos qualquer coisa da tarde. Em pleno vale do Tormes um sol de Agosto ainda alto iluminava os campos de agricultura intensiva típicos da periferia norte de Salamanca. O som de um tractor nas redondezas, algumas vozes dispersas e o chilrear das andorinhas compunham a paisagem. Sentado entre uma silva, o muro da propriedade e a estrada nas minhas costas dei uma passa no meu charrinho, tão desejado durante todo o dia, e respirei fundo. Embora a massa urbana da cidade ainda nem sequer se vislumbrasse, tinha chegado!
Olhei de novo para o espectáculo que se me deparava: a minha t-shirt, os calções, as alças do camelbak, as luvas e até, imagine-se, as protecções do capacete mostravam bem a dureza do que tinha acabado de fazer. Todos exibiam marcas brancas e brilhantes, concêntricas, feitas de sal, feitas do meu suor. Foram 120 quilómetros debaixo de um sol abrasador, em apenas pouco mais de quatro horas, carregando catorze quilos de saco, enfrentando o alcatrão deserto que encontra apenas três povoações desde a fronteira que havia deixado há mais de 90 Km e que percorrera completamente sozinho. De certo modo estava orgulhoso. Tinha resolvido uma série de problemas que à primeira vista teriam comprometido a partida nesse dia. Combinara comigo mesmo que partiria às dez da manhã de modo a chegar a Salamanca ainda com sol. Contudo um problema no suporte do saco atirou-me para o meio-dia sem um único metro percorrido. Pior, na fronteira, uma “oportuna” ‘Vuelta a Zamora’ deteve-me em Bemposta e fez-me perder mais uma hora e meia. Com o sol a pôr-se por volta das oito da noite bastaria mais meia-hora para definitivamente adiar a partida. Finalmente, quando pouco faltava para as três da tarde, iniciei a descida para o vale do Douro e, ao cruzá-lo, iniciei também a minha viagem sem destino pela meseta espanhola: o destino final não o sabia - santiago, astúrias, madrid, o sul…o ‘puzzle’ decidiria.
Agora que estava aqui, a apenas treze quilómetros de Salamanca, respirava fundo mais uma vez, contente por ter superado todos os obstáculos, pedalado praticamente sem interrupções, por ter tido a vontade de partir sem me importar com o medo do desconhecido, por apenas ter dado ouvidos à necessidade de seguir em frente e ofereci-me mais uma lufada de erva amiga.
Ainda não o sabia mas, dali a pouco, depois de me ter de novo posto a caminho, com a ‘conquista’ no papo, iria furar os pneus por quatro vezes em menos de dez minutos (gentileza de um certo tipo de árvores castelhanas cujas sementes são afiadas como pregos), deixando cair a noite e atrasar-me irremediavelmente para o encontro que tinha marcado com o sol na praça mais bela do mundo, e, em plena nacional espanhola, empurrar a bicicleta durante seis quilómetros no meio da escuridão completa, chamar um táxi quando finalmente tivesse encontrado alguma casa, pessoa ou luz que fosse, chegado a um albergue dos arrabaldes às onze da noite, maldizer a sorte e abandonado definitivamente a ‘glória’ de ter deixado Vilarinho dos Galegos como quem vai dar uma volta até à vinha e chegar a Salamanca entrando, triunfal, por uma das portas da Plaza Mayor ainda durante esse mesmo dia.
Contudo, desconhecendo o que o caminho me reservava, entreguei-me àquele momento único: estava só e cansado mas feliz por poder presenciar o belo e pacífico cenário dos campos verdes do Tormes. Com o sol ainda a prometer uma boa hora de luz deixei-me estar e esqueci-me da alegria imensa que é a aventura pessoal de viajar sozinho e sem destino, esqueci-me dos dias que me esperavam montado no mais perfeito veículo deste mundo, esqueci-me do que me tinha impelido a fazer esta viagem, esqueci-me...
Esse momento, que agora partilho, foi só meu. Sem expectativas nem lamentos, sem passado nem futuro, sem história nem ambição. Não estava só nem acompanhado…estava apenas ali, sentado, entre o céu e a terra…
Levantei-me, pus o camelbak às costas e parti!
Um comentário:
Escreve mais Porra!
Abralho
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